quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Quando eu era pequena...

Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.
O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas (...)
O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas, quando se aproximava, via-se que era o Búzio.
Na mão esquerda trazia um grande pau que lhe servia de bordão e era apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os cães raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele guardava os bocados secos do pão que lhe davam e os tostões. O saco era de chita remendada e tão desbotada pelo sol que quase se tornara branca.
O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento e, dois passos à sua frente, vinha o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pêlo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto.
E pelas ruas fora vinha o Búzio com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos.
Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas.
Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um pedaço de pão e lhe dizia:
_ Vai-te embora, Búzio.
Mello Breyner Andresen, Sophia, Contos Exemplares, 6.ª edição, pp. 141 a 143

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