«Louvado seja o bom Jesus, Nosso Senhor!...»
É a hora. São quatro da manhã. Os homens vão saltando dos beliches à medida que acordam e, ainda ensonados, benzendo-se, respondem ao vigia:
«Que nos remiu em sua Santa Cruz, louvado seja!»
É madrugada e as sombras que cobrem o mar recuam ante a claridade frígida, cor de pérola, que alastra sobre o oceano. Não há brisa, é dia de pesca.
Almoço frugal logo em seguida e, preparados os botes (os dóris), prontos os anzóis, linhas e isco:
«Arriando, com Deus!»
Lá vão, cada qual no seu barquito, para a grande aventura quotidiana. E cada qual pensa, o coração sempre apertado neste momento:
«Voltarei hoje? Ai, minha Nossa Senhora...»
Há um que leva aos lábios uma medalha - Senhora da Nazaré, Senhor dos Navegantes... - que traz pendurada ao peito, outro, disfarçando mal, acaricia o retrato dos filhos que tem oculto no bolso; outro ainda, mais novo, um «verde», em vago sorriso crispado pelo frio e pelo medo, promete como quem reza: « Hei-de fazer a nossa casa com o dinheiro desta viagem, Maria... casaremos pelo Natal!...»
«Arriando , com Deus!»
Todas as madrugadas o capitão os despede com este mesmo grito e, em cada dia, ele fica longo tempo debruçado na amurada, apreensivo, com uma asa nostálgica a sombrear-lhe os olhos duros...
Esta é a pesca à linha, nos bancos da Terra Nova e da Gronelândia.
Quem pesca assim? Só os portugueses, no mundo inteiro!
Lá vão eles: um homem e um barquito frágil... frente ao mar tão forte e tão volúvel, à neblina que pode tornar-se cerrada, ao vento que pode levantar-se rijo...
Um homem sozinho, frente ao infinito!
E cada barco alivia no mar, com a escrita da sua quilha, o peso duma interrogação ansiosa, logo apagada pela espuma leve e branca...
Bernardo Santareno, Nos Mares do Fim do Mundo, 1.ª ed., pp. 19 a 20
sexta-feira, 31 de agosto de 2007
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